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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Vestibular depois do Vestibular

  Aprumo meu corpo sobre a cadeira, estalo as costas e crispo os dedos. Confiro se as canetas funcionam e se os lápis estão apontados. Com o olhar afiado, encaro a nuca do inimigo que se senta a minha frente . O silêncio que pesa sobre nós é bruscamente suspenso por um sinal aguso. Num susto, desembainhamos nossas esferográficas e viramos a primeira página. Enquanto as engrenagens dos nossos relógios de pulso mastigam o tempo com pressa, o único pensamento que aparece para aliviar a barra é: "depois do vestibular, nunca mais!".
  Agora, dez anos depois, escrevo minha primeira crônica para a Megazine. A primeira crônica é normalmente aquela onde o sujeito se apresenta, pega leve e comete obviedades, como escrever sobre o vestibular (prometo que é a última vez que toco no assunto). Ouço música a todo volume, balanço a cabeça na frente do computador - estou em casa. Não tenho sinal, inspetor, nucas ou questões para encarar. Tampouco há gabarito e correção dos professores. Sequer preciso apontar o lápis. Mas tenho de agradar aos editores, aos chefes dos editores e, acima de tudo, a essa entidade mítica, poderosa e invisível:o leitor. Toda essa gente fica espiando por trás dos meus ombros enquanto escrevo. Não existe resposta certa e nunca estou exatamente seguro sobre quais palavras usar. E, cá entre nós, não tenho certeza se vou realmente chegar até o final deste texto . Eu, que certo dia enxerguei o vestibular como a prova final, última fronteira, alforria, carta branca, anistia, liberdade geral e irrestrita, descobri que estava mais errado do que a alternativa "Z" da prova de múltipla escolha.
  Esse foi apenas o primeiro erro.
  No momento, pra mim, a prova é esta crônica. Amanhã será o lançamento de um livro, quando esquecerei o nome dos convidados, ou uma mesa-redonda numa festa literária, onde não farei ideia de como enrolar o público. Um dia o vestibular já foi uma entrevista de trabalho, uma prova incompreensível ministrada por um catedrático psicopata, o primeiro emprego - e o primeiro chefe. Há outras provas mais tensas, que exigem dose extra de sangue frio: ser apresentado aos pais da menina, ser aprovado pelos pais da menina e, finalmente ser convidado para almoçar na casa dos pais da menina. Duas fases, prova oral, sem múltipla escolha. E aí, vai encarar?
  Quando a gente se acostuma com a ideia de que sempre haverá outro vestibular, tudo fica mais leve. Como eu, agora, chegando ao final desta primeira crônica. Só falta entregar ao fiscal de prova e torcer para não ter zerado. Sem o piano nas costas, saio da frente do computador, tomo um banho gelado e vou esticar as ideias na rua, sabendo que, na semana que vem, outro vestibular me aguarda. Sempre há outra crônica depois da crônica. Sempre há um vestibular depois do vestibular.

(Megazine, agosto de 2006-João Paulo Cuenca)

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